Wednesday, May 30, 2007

Um Conto...

Traidor!

O homem olhava o céu cinzento através das vidraças da janela. De pé, com as mãos cruzadas atrás das costas, os seus olhos perscrutavam o imenso céu è procura de uma resposta:
- Porquê? Porquê?
Acabara de saber da notícia pela boca de um dos seus fiéis. O Santa Maria, um dos maiores paquetes de luxo portugueses, fora desviado pelo capitão Henrique Galvão.
Galvão! Sempre o julgara um fiel partidário do regime e afinal... Não aquilo não podia ficar assim. Tinha de encontrar uma resposta, tinha de vingar o regime. Quem se julgava esse capitãozeco Henrique Galvão? Algum Messias Português? Um Bonaparte Lusitano? Não aquilo não ficava assim, ou não fosse ele o verdadeiro e único senhor da Nação Portuguesa.
Alguém bateu à porta.
- Entre!
- Desculpe, Senhor Doutor, o almoço está servido.
- Sim, já vou Maria. Obrigado!
A porta fechou-se. Ele fechou também os olhos, aquela traição não lhe saía da cabeça. Como pudera aquilo acontecer? E num repente recordou palavras que ouvira na sua infância, palavras que falavam da tirania do trono, das liberdades oprimidas, do povo que vivia na miséria. Palavras de algum anarquista, por certo, mas que se misturaram com a ideia da traição.
- Liberdade! Tirania! Será possível?
Naquele momento, algures no Atlântico, a bordo do Santa Maria, o capitão Henrique Galvão olhava também o céu, um céu azul sobre um mar verde de esperança.
- Hoje abrimos os olhos ao mundo. Agora não podem dizer que não sabem o que se passa em Portugal. Esta é a primeira vitória da Liberdade.
A seu lado os seus fiéis sorriam, dentro deles a árvore da liberdade começara a florescer, os primeiros rebentos despontavam sob aquele céu ameno e azul.
- Agora aquele traidor já sabe de que são feitos os portugueses.
Mas os olhos de Galvão escureceram. Aquela palavra traidor não se poderia também aplicar a ele mesmo? Traíra o regime que durante anos apoiara. Não seria ele o verdadeiro traidor?
- Portugal rejubila, somos os heróis do dia.
Estas palavras iluminaram-lhe de novo o olhar. Não, não era traidor! A razão estava do seu lado. O que ele fazia era em prol das liberdades do seu país, do seu povo. Trair um regime não é o mesmo que trair a Pátria. Galvão traíra o governo, mas aquele não era o governo do povo, o povo não o elegera. O povo, esse era calcado debaixo dos pés de um regime de opressores, um regime com pés de barro, que ele fizera tremer. O que Galvão fazia era para o povo, com o povo e pelo povo.
Mas, lá longe, em Portugal, debaixo de um céu cinza um olhar duro, inexpressivo e frio continuava a pensar naquele paquete algures no Atlântico.
- Traidor! Galvão és um traidor! Mas isto não há-de ficar assim, a justiça de Salazar tarda mas não falha.

1 comment:

Fixe-fine said...

Quem é o autor de tão engraçado opúsculo? És tu, Armindo?
A rápida resposta de Salazar mostra bem como controlava a PIDE (auxiliavam-se...) e, sobretudo, os militares.